Crónica de Jorge C Ferreira | Viva o sabão azul e branco

Jorge C Ferreira

Crónica de Jorge C Ferreira
Viva o sabão azul e branco

 

Estou farto dos anúncios que me entram casa adentro. Dos mil e um produtos para limpar melhor e pôr mais pura a pureza do branco. Das bolinhas para perfumar a roupa. Dos amaciadores. Dos tira-nódoas. De todos os tipos de detergentes. Que fará tudo isto ao ambiente? É ordem da Europa? Não vos sei dizer. Que é um grande negócio, não haja dúvida.

Água fria da Ribeira, e a roupa a corar. A querida Beatriz Costa e a “Aldeia da Roupa Branca”:

“Ai rio não te queixes

Ai o sabão não mata

Ai até lava os peixes

Ai põe-nos cor de prata

Roupa no monte a corar

Vê lá bem tão branca e leve

Dá ideia a quem olhar

Vê lá bem que caiu neve

Água fria da ribeira

Água fria que o sol aqueceu

Ver a aldeia traz à ideia

Roupa branca que a gente estendeu

Três corpetes, um avental

Sete fronhas e um lençol

Três camisas do enxoval

Que a freguesa deu ao rol”

(A. Curto, G. Chianca, Raul Portela)

jcferreira livro

As lavadeiras saloias. Saudades da Beatriz Costa, com quem ainda tive o privilégio de conversar.

Em casa, um tanque cinzento, o esfregar, o bater, o torcer e o trabalho duro, quase sempre das mulheres.

Sou do tempo do sabão azul e branco. Muitas vezes fui fazer recados. O que eu adorava ir fazer recados. Dava uma volta e, muitas vezes, ainda recebia um tostão para comprar um boneco da bola. Muitas vezes fui buscar uma ou meia barra de sabão azul e branco, que em casa se cortava em fatias para ir gastando.

Era o tempo do muito pouco. Tenho saudades das pessoas, não do tempo que vivemos aperreados e sofridos.

As primeiras máquinas de lavar apareceram. Ainda muito primárias. Foi a Isabel que me contou, pois em minha casa nunca vi tais aparatos. É impressionante, lembro-me do primeiro frigorífico da minha velha casa. Máquina de lavar, não.

Apesar de tudo, a roupa sempre impecável. Depois de lavada o sol fazia o resto.

Mas vamos lá então às primeiras máquinas de lavar roupa, segundo o relato da Isabel.

Era uma máquina em que a roupa se metia por cima. Não havia detergente. O sabão azul e branco era cortado em pequenas lascas e seguidamente metido em água e posto ao lume a derreter. Assim era criado o detergente. A máquina tinha dois rolos em cima entre os quais se metia a roupa. Os rolos puxavam a roupa e puxavam-na e espremiam-na. E de mais pormenores já não se lembra a Isabel. Por isso não nos vamos pôr a inventar. Ficamos por aqui.

Há uns anos, um grande amigo meu com cerca de oitenta anos, continuava com uma farta cabeleira branca e um cabelo brilhante. Perguntei-lhe com que lavava a cabeça. A resposta veio rápida: «sempre com sabão azul e branco e nada mais.»  Fiquei estupefacto. Tanto shampoo, tanto amaciador, tanto produto esquisito e tanto careca.

Esse meu querido Amigo faleceu ainda com um belo cabelo.

Sabem onde posso ainda encontrar uma barra de sabão azul e branco?

«Tu, tens cada uma. Queres pôr-me a esfregar a roupa de novo?»

Fala da Isaurinda.

«Nada disso, acho que tudo o que inventam é demasiado e desnecessário.»

Respondo.

«Olha, logo tu que nunca lavaste uma peça de roupa. Tem juízo.»

De novo Isaurinda, e vai, a fazer caretas de gozo.

   

     Jorge C Ferreira Julho/2024(442)


Jorge C. Ferreira
Jorge C. Ferreira (n. 1949, Lisboa), aprendeu a ler com o Diário de Notícias antes de ir para a escola. Fez o curso Comercial na velhinha Veiga Beirão e ingressou na vida activa com apenas 15 anos. Estudou à noite. Foi bancário durante 36 anos. Tem frequentado oficinas de poesia e cursos de escrita criativa. Publica, desde 2014, uma crónica semanal no Jornal de Mafra. Como autor publicou as seguintes obras: A Volta à Vida à Volta do Mundo (Crónicas de Viagem) Editora Poética (2019) Desaguo numa Imensa Sombra (Poesia) Editora Poética (2020) 60 Poemas mais um (Poesia) Editora Poética (2022) O Mundo E Um Pássaro (Crónicas Vol.I) Editora Poética (2022) O Mundo E Um Pássaro (Crónicas Vol.II) Editora Poética (2024) Participação em Antologias: A Sombra do Silêncio/À L’Ombre du Silence (Poesia) Antologia Luso-Francófona Editora Mosaico das Palavras (2018) Poetas do Reencontro (Poesia) Antologia Galaico-Lusa Editora Punto Rojo (2019) A Norte do Futuro (Poesia) Homenagem poética a Paul Celan Editora Poética (2020) Sou Tu Quando Sou Eu Homenagem À Amizade (Poesia) Editora Poética (2021) Água Silêncio e Sede Homenagem Poética a Maria Judite Carvalho (Poesia) Editora Poética (2021) Ser Mulher IV As Palavras (Poesia) Editora Mosaico das Palavras (2021) Nem Sempre Os Pinheiros São Verdes II Editora Poética (2022) Representado na Revista Pauta nº9 com um Poema (2022)

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16 Thoughts to “Crónica de Jorge C Ferreira | Viva o sabão azul e branco”

  1. Maria Luiza Caetano Caetano

    Sempre belas as suas memórias, esta avivou a minha. Embora nunca tenha esquecido, o sabão azul e branco. Ainda hoje o uso, tem grande poder higiénico, para lavar as mãos é perfeito. Pobres senhoras, sempre tão sobrecarregadas com as limpezas de casa e a lavagem da roupa. Abençoadas as máquinas, que hoje tão bem cumprem essa missão. Não sei, como conseguiam espremer os lençóis, eram mesmo umas heroínas. Conheci as primeiras máquinas, não em nossa caa. Sim, na casa da Senhora que morava, ao nosso lado. Exactamente como a que menciona, no seu texto e tal e qual como a Isabelinha explica. Pouco ajudava, ainda tinha algum trabalho manual. E o resultado final não era o desejável. Sempre maravilhosos os seus temas, querido amigo. Têm sempre a intenção de louvar, quem tão duramente viveu a sua vida, sem deixar de ser feliz. Neste sem fim de produtos, meu amigo pode acreditar que tenho, poucos. Mas sempre o fiel, sabão azul e branco. Adorei, grata por estes bons momentos de escrita, que leio com prazer. Abraço grande.

    1. Jorge C Ferreira

      Obrigado Maria Luiza, minha querida Amiga. O prazer é meu em ler os seus belos comentários. A forma como aborda os meus textos. A minha imensa gratidão. Abraço grande.

  2. Sofia Barros

    Lembranças que se guardam com carinho.
    Um abraço, amigo.

    1. Jorge C Ferreira

      Obrigado Sofia. Que bom estares aqui. Coisas que não esquecem. A minha gratidão. Abraço grande

  3. Eulália Coutinho Pereira

    Que bela memória!
    Também eu sou do tempo, em que as lavadeiras iam ao ribeiro lavar a roupa. Na aldeia era assim . Nem tanque nem máquina.
    Água corrente, pedra para bater a roupa, sabão azul e branco e sol.
    Fica o cheiro a lavado, com sabão.
    Permanece para sempre na memória.
    Mais tarde aparecem as máquinas.
    Detergentes, branqueadores, amaciadores. É só escolher.
    O sabão azul e branco ainda existe. Não será esquecido. Faz parte do tempo em que se vivia com tão pouco.
    Obrigada Amigo por este regresso ao passado.
    Grande abraço.

    1. Jorge C Ferreira

      Obrigado Eulália. Tão belo o seu comentário. As ribeiras e as pedras. O sabão azul e branco. A minha imensa gratidão. Obrigado. Abraços.

  4. José Luís Outono

    Como te entendo estimado amigo, nesta crónica de limpezas, onde o azul e branco personalizavam o sabão como mestre do ofício de lavagens.
    Num repente, lembrei-me e criei parte de uma canção;

    De azul vos vesti
    branco e defensor
    sabão que nunca vi
    causar uma dor!

    Lembro-me perfeitamente do uso desse sabão, na casa dos meus papás , onde se comentava da sua excelência de “actuação” no mundo das limpezas, quase gerais.
    Ainda no outro dia, numa “drogaria” Lisboeta, vi na montra uma intensa promoção ao sabão azul e branco, como excelente na lavagem do nosso corpo e cabelo.
    Sorri, e um casal de boa idade, muito amorosos, confidenciaram-me :
    -Do melhor, que a gente tem lá em casa, incluindo os nossos banhos.
    Perguntei:
    – Incluindo o cabelo?
    – Caríssimo o corpo todo, e nem cheiro se nota ou deixa após lavagem!
    Podes acreditar, que hesitei … compro … não compro …
    Pelo sim pelo não, mantenho o meu gel e champô … já em muitas décadas, e dou-me bem.
    Com tudo isto … diz o povo, ultrapassei o teu comentário sobre os teores promocionais, que tudo inventam para vender, e o cidadão despreocupado faz a vontade ao apelo.
    Mais ainda, sendo licenciado em Marketing, cada vez mais deito as mãos à cabeça face “às formas promocionais” utilizadas sem nexo, ou eficácia, e pergunto … COMO?????
    Pronto, estou a ultrapassar os limites, e vou lavar as mãos exigentes de um teclado que por vezes apresenta algumas nódoas, nomeadamente pingos de café … amigos do meu impulso de escrita e lógico batimento de teclas.
    Grato por estas crónicas, tão simples, mas bem apelativas de leituras, que vitaminam o meu “LER” após correr o teu “ESCREVER”.
    Grande abraço!

    1. Jorge C Ferreira

      Obrigado Jose Luís, meu Amigo, Poeta. Que lindo e generoso comentário. Hoje com direito a uma quadra bem esgalhada. A minha gratidão. Obrigado. Abraços

  5. Branca Maria Ruas

    Esta crónica trouxe-me memórias que julgava esquecidas…
    Também houve uma máquina dessas (de lavar roupa) lá em casa.
    Recordo-me das roldanas para a roupa ficas bem espremida antes de ser estendida. Tenho uma vaga ideia de que se dava à manivela para as pôr em funcionamento mas já não tenho bem a certeza. Mas a imagem veio-me de imediato à cabeça…
    Quanto ao sabão azul e branco, ainda o uso para lavar alguma roupa à mão. Há uma drogaria muito antiga em Algés que tem esse sabão e muitas outras coisas. Quando lá se entra ainda se sente o cheiro da drogaria que se mantém há anos.
    E também uso o sabão de seda para roupas mais delicadas.
    Para a roupa ficar mais branquinha o bicarbonato de sódio também é bom.
    Houve muita inovação mas nem sempre inovação é evolução e há coisas que podemos (e devemos) manter. Não pela tradição mas pela defesa do ambiente.
    Obrigada pela crónica!

    1. Jorge C Ferreira

      Obrigado Maria. Sabe tão bem ler-te. Confirmei a tal manivela existia. Coisas tão antigas! É muito bom estares neste espaço. Sempre a tua voz do lado certo da vida. A minha imensa gratidão. Obrigado. Abraços

  6. Claudina

    Cenas que vivenciámos já faz muito tempo mas que recordamos com carinho. Bem hajas por tão lindo Poema Jorge C. Ferreira .Vamos salvar o planeta!

    1. Jorge C Ferreira

      Obrigado Claudina, pela tua presença e as tuas assertivas palavras. Vamos. Muito grato. Obrigado. Abraços

  7. Fernanda gonçalves

    Do cabelo lembro-me ei do primeiro champô, numa almofadinha plástica com uma pasta amarela parecia ovo. Mas antes disso era mesmo com chá, de tília, de folhas de nogueira no meu caso para ficar mais arruivado. No final passava-se um pouco de vinagre para dar brilho. Depois começamos a ir a Badajoz comprar espumas de banho (FA) e produtos vários, águas de colónia, Lavandas e os famosos caramelos. Até se faziam excursões quem não tinha carro. Depois de ter casado e ter nascido o meu filho, íamos com outros amigos a Badajoz, o passeio era sempre o mesmo e antes do Natal, comprar brinquedos para os miúdos. Os animais em plástico do jardim zoológico, os carrinhos e toda essa quantidade de plástico para as crianças pequenas. Era uma Festa. No trajecto havia almoço em Montemor, e no regresso as típicas tapas. Felicidade da abundância! Quem me diria Fascismo nunca mais, nunca saiu das nossas bocas!
    Meu amigo! Era Só amor …ignorancia…e silêncio!
    Vinha o Natal, o Peru e as Filhoses, como nós dizíamos!
    Hoje não quero falar de Tristeza! Quero dar-te um grande abraço e oferecer-te um champÔ bem cheiroso quando te encontrar para os teus caracóis! beijinhos.

    1. Jorge C Ferreira

      Obrigado Fernanda. Sei também do badedas. Mas aos rapazes era difícil passar a fronteira. Ainda me lembro: “nove de cada dez estrelas usam lux”. Da minha boca ouvirás sempre: 25 de Abril Sempre fascismo nunca mais” . A minha gratidão. Abraço grande.

  8. Fernanda Luís

    Olááá Jorge!
    Fez-me rir a sua crónica…
    Eu ainda uso sabão azul e branco em certas situações. Claro que também uso outros detergentes mas sou conservadora nas marcas. Fiquei muito colada aos conselhos e marcas usadas pela minha mãe, duas ou três ao todo e que ainda existem no mercado.
    Aproveito a boleia para dizer que uso vinagre e limão com muita frequência na limpeza de utensílios de cozinha. Julgo serem mais amigos do ambiente. Cá por casa, somos “ecologistas”.
    Achei a crónica muito higiénica e amiga do ambiente, ahah! Viva o sabão azul e branco! Recomendo.
    Abraço

    1. Jorge C Ferreira

      Obrigado Fernanda Luis. Que bom e divertido oseu comentário. Que bom ter lido tão bem o meu texto e a forma como o conseguiu exprimir no que escreveu. Obrigado pelas dicas. A minha gratidão. Abraço grande

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